O Bom rebelde de San Donato

Fonte
A Bola
"Arrivo in hotel alle undici. Ci vediamo dopo. Ciao." A mensagem no telemóvel é de Miccoli. Foi buscar a reportagem de A BOLA ao hotel, a Lecce, às onze horas como combinado. Fez questão. Ténis, calças rasgadas, t-shirt justa. Foi sempre assim, até nas importantes apresentações nos grandes clubes como Juventus ou Benfica. Porque não basta parecer, é preciso ser. Manrico, 35 anos, talvez o melhor amigo de Miccoli, conduz o moderno Mini Cooper do jogador do Benfica. É melhor assim, o seu Fiat Punto não está nos melhores dias e ficou em San Donato. Fabrizio segue mais atrás noutro carro, com o empresário e amigo de longa data, Francesco Caliandro. Amigo baptizado por Bob Marley Manrico, que diz ter sido baptizado por Bob Marley, voa pela via rápida e coloca o volume do rádio no máximo. "Gostam?", pergunta, orgulhoso, no seu jeito louco e puro de ser e estar. É reggae. Perdão, é mais do que isso, é Sud Sound System, banda reggae salentina, a preferida de Miccoli, que conhece todos os elementos do grupo e com eles convive desde pequeno. Ritmo alegre que abana a vida, letras com atitude. Tudo cantado por Fabio Terron (irmão de Manrico) no dialecto da região, o mesmo com que todos comunicam aqui. O italiano é mesmo só para os visitantes. Entramos em San Donato sob chuva intensa - tem sido assim nos últimos dias, ainda que as temperaturas mantenham níveis agradáveis. As ruas ficam estreitas, o branco apodera-se do cenário. Cinco mil habitantes tem o paese (terra) de Miccoli. Primeira paragem no café (ninguém nos deixa pagar nada, somos convidados) e prego a fundo até ao campo de futebol onde Fabrizio deu os primeiros passos como jogador. Está deserto, apenas o zeloso funcionário de sempre a tratar da manutenção do recinto, com muito carinho. Sud Sound System Próxima paragem, o estúdio dos Sud Sound System, no palácio de San Donato, com 500 anos. Os discos são gravados numa antiga capela, quem diria. Aqui nada está arrumado mas tudo faz sentido. Fabio Terron oferece-nos três CD da banda, mostra-nos a prancha comprada em Portugal - não fosse ele um apaixonado do surf que já entrou em diversas competições nas praias lusitanas - e a estrutura para skates montada na garagem ao lado. Um café e... "A BOLA" Agora vamos a pé, o café é ali em frente. Aqui todos se conhecem e, subitamente, o espaço parece pequeno para tanta gente. Os tios Salvatore e Rafael (dois de sete irmãos) são os últimos a juntar-se à porta. Já lá estavam Manrico, Fabio Terron, Titto (sobrinho de Giuseppe Bruno, primeiro treinador de Miccoli no AS San Donato), Caiatta Pasquale, outro amigo, e, atrás do balcão, Bruno Pasquale, ele que tinha a missão de defender a baliza da equipa nos torneios de infância. Outros por ali passaram e se juntaram, debruçando-se sobre a edição do nosso jornal que destaca a grande exibição e o golo de Miccoli frente ao Lille. Não os surpreende, desde sempre conhecem Fabrizio Maradona (assim o apelidam) e o seu talento. Percebe-se que Miccoli (26 anos) é o mais novo do grupo, o puto que sempre gostou de acompanhar os mais velhos. Mas ali a fama dilui-se, ele é apenas um igual a todos os outros. É o Fabri, o Fabri de sempre. E porque alcunhas não lhe faltam, chamou-lhe a atenção a primeira parte do título da crónica do nosso companheiro António Simões, referente ao Benfica-Lille. "Diabruras de rato Miccoli...", podia ler-se. "O que significa rato? É topo (rato em italiano)?", perguntou Fabrizio. Perante a resposta afirmativa, sorriu e provocou gargalhada geral. "Logo vi...", soltou. Saudosa peladinha Tempo então para picar o presunto e o queijo que Pasquale colocou no balcão. Segue-se o brinde à felicidade, à amizade, a San Donato. Por esta altura chega Manrico com uma bola de futebol - foi de propósito buscá-la a casa - e a Praça Garibaldi, logo ali ao lado, é o local perfeito para uma peladinha. Como tantas outras que encheram as ruas de San Donato ao longo dos anos. De tal forma que as gentes da terra se habituaram a ver Miccoli passear-se com o futebol debaixo do braço e muito talento nos pés. De tal forma que todos sabiam que daria craque. Lar, doce templo Ele, o bom rebelde de San Donato, com tanto de irreverente como de apaixonado pelo próximo, pela vida e pelo futebol, leva-nos agora a casa dos pais, Enrico e Enrica. Entrámos num templo! Fotografias e recordações forram as paredes (lá está, em destaque, a camisola da estreia pela selecção italiana, frente a Portugal), enquanto Enrico abre duas caixas de sapatos cheias de memórias visuais, qual história de uma vida, a de um dos seus filhos (Miccoli tem um irmão). O fã número um de Fabrizio tem também gravações em DVD e cadernos cheios de recortes de jornais. Tudo muito bem organizado, para que nada falhe. Miccoli também é coleccionador, mas de camisolas. Que olhar orgulhoso naquele desfile de maglie onde não falta a do amigo Rui Costa entre tantas outras de outros nomes sonantes. Marchello Antonio, treinador de Miccoli nas camadas jovens do Lecce, Anna Rita, uma amiga de longa data da família, e o empresário Francesco Caliandro completam um ambiente acolhedor onde não poderiam faltar as duas mulheres da vida de Fabrizio: Flaviana, a esposa, e Swami (significa amor em indiano), a filha de três anos. Ficamos para almoçar e conversar entre gente de uma humildade e naturalidade impressionantes, que Miccoli herdou em todos os sentidos. Sorrisos a cada esquina A hora já vai longa, mas Fabrizio não quer que deixemos San Donato sem mais duas paragens, na companhia de Flaviana e Swami. Primeiro a casa dos sogros, Michele Perrone e Anna Rita Conte, onde guarda mais recordações na parede (uma fotografia com o Papa João Paulo II, por exemplo) e a camisola de Roberto Baggio, o ídolo italiano. Depois de mais um café servido com qualidade e simpatia-aqui há sorrisos a cada esquina-, altura de passar pela casa dos avós. "Miccoli!", apresenta-se prontamente o avô Giuseppe, como se um nome de guerra se tratasse, retirando os tubos que o ajudam na respiração para tirar uma fotografia com o neto. Também ali estão a avó Lucia, a tia Rosi e o marido Donato. O carro fica na rua, aberto, e assim poderia ficar a noite inteira. O que é de Miccoli é sagrado. Tempo de voltar a Lecce com duas certezas: a de que os homens não se medem aos palmos, sobretudo os que têm a grandeza de espírito de Miccoli, e de que San Donato torce pelo Benfica. Porque a felicidade do Benfica é a felicidade de Miccoli e essa é intocável para esta gente que o ama e respeita por aquilo que é e sempre foi.